Por Pierre – Noël Giraud*
Tradução: Martina Grasel Maigret
Trabalhadores sem terra do Brasil, pessoas em condições precárias da Europa, habitantes das favelas em Bombaim, desempregados, doentes, refugiados: nossos tempos provocaram a aparição de uma figura trágica: o homem inútil, tanto para os outros como para si mesmo.
Refugiado sírio com a filha nos braços sob a tempestade caminhando em direção à fronteira entre a Grécia e a Macedônia.
De XI Jinping a Barack Obama, os governos, secundados pelo FMI e a OCDE, agora se preocupam com as desigualdades e pregam crescimentos mais inclusivos. A teoria do “escoamento” tornou-se obsoleta, da mesma maneira como outrora foi o caso do equilíbrio naturalmente estável dos mercados financeiros. Redescobre-se a amplitude das imperfeições de mercados. O enriquecimento dos mais ricos não é suficiente para retirar os mais pobres de seus alçapões, ao passo que as desigualdades de salários, que se acentuam em todos os lugares, prejudicam o sacrossanto “crescimento” (pelo subconsumo), colocam em perigo a estabilidade financeira (por causa do excessivo endividamento) e até entravam a mobilidade social, a inovação e, sobretudo, a salvaguarda do planeta! Reduzir as desigualdades, então, torna-se a prioridade oficial dos governos. Continua, entretanto, a questão da sua implementação.
Supérfluos, ignorados, excluídos
Poderia se começar por perguntar, visto que, em realidade, as formas de desigualdades são muito diversas, quais são as que convém reduzir prioritariamente as que são as mais “injustas”. Isto necessariamente supõe a definição do que seria uma “sociedade minimamente justa” sob o plano econômico e trata-se de uma reflexão na qual ilustraram-se John Rawls e Amartya Sen, entre muitos outros. Do meu ponto de vista, a forma mais injusta de desigualdade é a “inutilidade”. É a existência de homens e de mulheres, cada vez mais numerosos, que nasceram ou tornaram-se inúteis aos outros e a eles mesmos. Como nos disse René Descartes: “Não se vale propriamente nada, quando se é inútil a qualquer pessoa” (Discurso do método). Eles não são nem superexplorados, eles são supérfluos, inexploráveis, supranumerários, ignorados, rejeitados, excluídos e, muitas vezes, odiados. Hoje, os malditos da Terra não são mais os colonizados e os superexplorados, são os homens e as mulheres inúteis. Ao contrário dos colonizados e dos proletários, de quem muito se precisava, aqueles são perfeitamente dispensáveis. A partir daí, imaginar as formas de se livrar deles é só um pequeno passo.
Quem são eles? Nos países ricos, são os desempregados de longa data e todos aqueles e aquelas que nem se apresentam ao mercado de trabalho ou dele foram expulsos cedo demais. Eles sobrevivem da assistência pública ou familiar. Mas também são todos aqueles que nos Estados Unidos são chamados de “working poors”, efetuando trabalhos ocasionais e mal pagos, sem poder progredir de qualquer maneira. Eles dificilmente sobrevivem pelos seus próprios meios e não pedem nada aos outros, mas são aprisionados em alçapões, com ausência de esperança de um dia sair deles. São dezenas de milhões no espaço da OCDE. Nos países emergentes e subdesenvolvidos, são os trabalhadores e agricultores que não possuem terra suficiente e que, miseravelmente, sobrevivem em quase autossuficiência. São os habitantes das favelas que não conseguem sobreviver dos trabalhos ocasionais do mercado informal e cujo capital natural muito degradado (agua salobra, fumaças em espaços confinados) destrói a saúde. Eles também dependem de formas de assistência familiar. São centenas de milhões. Nos países ricos como nos mais pobres, o que eles têm em comum, o que os identifica, é que eles estão confinados em armadilhas, apanhados em armações das quais, apesar dos esforços, eles não podem se desvencilhar. Quando se cai na inutilidade, geralmente não se tem acesso a nada que permitiria desfazer-se do impasse: um pouco de crédito, uma saúde boa, um mínimo de relações.
Adotemos o critério de justiça econômica de A. Sen, que substancialmente coloca que cada um deve ter, ao longo da sua vida, um mínimo de capacidades que são as “liberdades substanciais”. Este mínimo inclui: 1) capacidade de acesso a uma nutrição e aos cuidados que asseguram pelo menos uma esperança média de vida no país onde se vive; 2) capacidade, se desejada, de progredir para obter a vida “que se tem razão de querer viver”, diz A. Sen, e que supõe liberdade política, ensino suficiente e capacidade de melhorá-lo sem cessar, e, de maneira mais geral, as seguintes capacidades de acesso: ao capital natural e aos outros. Segundo este critério, está claro que a abertura das armadilhas de inutilidade, onde as pessoas precisamente ficam trancadas porque elas não possuem o mínimo de “capacidades” que lhes permitiriam de se libertarem por si próprias, deve se tornar a prioridade numero 1 de toda política econômica. E todo e qualquer programa visando erradicar a inutilidade deveria ser objeto de um amplo consenso.
Delinear as grandes linhas das políticas de erradicação da inutilidade passa pela análise das causas. As tensões locais com o capital natural, que a mudança climática vai agravar, são uma das importantes causas de inutilidade nos países pobres e emergentes. A globalização das empresas – que, para a localização dos empregos que eu chamo de “nômades”, colocam em concorrência implacável os territórios do mundo inteiro – é outra causa. As flutuações econômicas provocadas pelos colapsos da finança de mercado aumentam ainda o número de pessoas vítimas da inutilidade.
Nos porões dos setores sedentários
Concentremo-nos aqui à causa da inutilidade que é a mundialização das empresas. Graças à Internet e ao contêiner, a mundialização das empresas rompeu as cadeias de valor dos bens e serviços. As empresas globais localizam seus elos onde bem quiserem. Em cada território, então, encontram-se empregos nômades, em concorrência com outros empregos nômades do mundo inteiro, e empregos sedentários. Os sedentários encontram-se localmente em competição e eles fornecem bens e serviços a eles mesmos e aos nômades, que ou os utilizam como meios de produção locais de bens nômades ou os consomem. Quanto aos homens inúteis, eles aparecem “nos porões” dos setores sedentários. Eles são o resultado do que os setores sedentários não conseguem empregar. Para isso, dois tipos de causas: 1) os nômades do território não são suficientemente numerosos nem ricos, e, em consequência, a demanda formulada aos sedentários é muito fraca, 2) os bens e serviços sedentários propostos são tão pouco atraentes que os titulares de empregos nômades se dirigem aos bens nômades de substituição. Para passar uma noite agradável, a gente pode comprar uma pizza congelada e ver um filme de Hollywood on demand utilizando um computador Lenovo, ou ir jantar no restaurante vizinho e depois ir ao teatro com amigos.
A mundialização das empresas provocou no mundo uma repartição muito desigual dos empregos nômades por causa de poderosas imperfeições de mercado. Existem muitos desses empregos na China, cujo crescimento é puxado em excesso pelas exportações, em detrimento do mercado interior. Dramaticamente, eles quase não existem na África, enquanto que os Estados Unidos e a Europa os perderam em excesso, a fim de evitar um aumento das desigualdades de rendimentos entre os empregos nômades e sedentários, bem como do número de homens inúteis. Para corrigir esses excedentes, dois imperativos hoje se apresentam: de um lado, aumentar o número de empregos nômades no território e, de outro lado, tornar os bens e serviços sedentários mais atraentes, mais baratos e inová-los.
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Texto originalmente publicado na revista mensal francesa Sciences Humaines, p. 30-31, jan/2016. Texto original aqui.
* Pierre – Noël Giraud, professor de Economia da Ecole de Mines ParisTech e da Universidade de Dauphine, é o autor de “O homem inútil. Da correta utilização da Economia”, Odile Jacob, 2015.
Tradução: Martina Grasel Maigret
Olá!
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Ola, tomei a liberdade de enviar o link para varios colegas brasileiros e franco-brasileiros. Gostei muito da sua dinamica de marketing.
Fique sempre à vontade. Este espaço é seu também. 🙂
Outro beijo!
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