Quando tomei a decisão de ser professora, recebi da minha família olhares ressabiados. Eu não daria o tradicional orgulho para que pudessem encher a boca e dizer que “Ela é médica”, “Ela é advogada”, “Ela é engenheira” etc. Seria difícil ganhar dinheiro, “ser alguém na vida”. Provoquei a tímida resposta dada aos curiosos: “Ela é professora” (e que se mude urgente o assunto). E é essa a sensação por qual passam muitos colegas de lida: responder à pergunta “O que você faz?” e ouvir um insosso “Ah… Legal”. Durante um bom tempo isso me cansou bastante. Eu diria, sim, que isso me desanimou muitas vezes.
Mas hoje estou aqui para apontar equivalências entre ser professor e ser médico, advogado etc. E começo:
- “perde-se” noites trabalhando;
- pede-se licença a filhos, cônjuges, namorados, pais e amigos por precisarem corrigir, planejar, estudar…;
- tem-se a responsabilidade pela vida de alguém. Mais que isso: por várias vidas, simultaneamente (você sabe o que é estar numa classe de 50 adolescentes, lidando com seus hormônios, com seus problemas, silêncios, conversas, TPMs, autoafirmação, individualidades, mil perguntas ou total desinteresse por determinado assunto que eles são obrigados a aprender sem, muitas vezes, entender o porquê?);
- médicos têm de lidar com alguns pacientes que dariam tudo para não estarem ali. Professores também.
Planejar uma aula é como preparar-se para uma cirurgia. Planejar uma aula é também preparar um centro cirúrgico. É preciso que tudo corra bem (e ainda se complete dentro de um tempo determinado!). É preciso ter um plano B para o caso de as coisas fugirem do esperado. É preciso pensar nas atividades e nas provocações que devem ser feitas para que a sua aula reverbere para além daquele espaço. É preciso dar uma aula como quem fornece vida. E digo vida no sentido de ânimo, de projeção.
Arrisco-me a dizer que ser professor possui vantagens ainda maiores:
- se você é um bom professor, você será lembrado por muito tempo. Por toda a vida de alguém. Quem nunca ouviu esse início de frase?: “Nunca vou esquecer de uma professora que tive…”;
- professores são responsáveis não apenas por vidas, ânimos, projeções. Mas por futuros. Ainda mais: escolhas, formação (de opinião, de personalidade, de carreira…);
- professores são reconhecidos por seus ex-alunos mesmo depois de anos. E sabem o quanto foram significativos na vida daqueles alunos quando eles os cumprimentam. Sobretudo no modo como eles os cumprimentam (e não venha me dizer que você faz questão de acenar para um professor que você odiou ou que não lhe causou grande acréscimo).
E não posso deixar de tratar das habilidades tão necessárias. Pense nos professores de ensino infantil. Se você possui um filho e sabe a árdua tarefa que é cuidá-lo e formá-lo, pense em 20 crianças juntas. Elas querem brincar, elas querem falar, elas querem saber os porquês (muitas delas de uma só vez!), elas querem lhe mostrar aquele desenho (mais que isso: querem ser elogiadas!). O que fazer com aquela criança tímida, calada ali no canto da sala? Como entendê-la, como se aproximar, como conquistá-la e, ao mesmo tempo, dar conta de outras 19? “Mãe, seu filho teve febre, terá de observá-lo, não poderá vir amanhã”, tudo isso por escrito, nem sempre se tem contato com os pais. E a hora da merenda? Deliciosa loucura!
Tudo isso me fez recordar de quando fui bolsista, na Universidade Estadual de Feira de Santana. Meu tema era o desenho infantil e meu estudo era feito em uma escola de um bairro periférico da cidade. Uma vez na semana, eu visitava uma turma de 20 e poucas crianças, de 5 e 6 anos. Como o processo desenhístico infantil se mostra um momento rico de relatos autobiográficos, eu pude descobrir, através de tinta, lápis de cor e giz de cera, um aluno que era explorado pelo trabalho infantil, outro muito tímido que era espancado pelo pai. Tinha uma menininha linda e doce, com um problema muito delicado no coração. Ela não podia se chatear nem passar por emoções muito fortes. Era a criança mais dócil da sala, por quem eu era chamada de “’Pó’ Ena”. E lembro de um desenho que me chamou muito a atenção: uma casa preta. Também de uma menininha. Quando perguntei por que ela tinha escolhido aquela cor para pintar a sua casa, ela me disse que era porque a casa estava queimada. E acrescentou: “Meu pai botou fogo na minha casa comigo e minha mãe ‘dento’. Ele queria matar minha mãe. Me passa o lápis ‘ajul’”. Atordoada com o que eu tinha acabado de ouvir e com a naturalidade com que ela tratou do assunto e logo pediu um lápis, tive de, interna e discretamente, me recompor e já cuidar de um outro caso que solicitava a minha atenção: era um menino, Carlos, que sempre desenhava ele e dois homens. Um com cor mais forte e outro com cor mais fraca. A primeira vez que perguntei quem eram aqueles, ele me disse que eram o pai e o tio. Tive dúvida se era um tio, me perguntei pela ausência da mãe, me fiz várias perguntas e fui até a professora da classe, noutro momento, e quis saber. Ela me explicou que ele tinha sido abandonado pela mãe e, ainda bebê, sendo criado pelo pai, este morreu e o tio passou a criá-lo. Noutro dia, perguntei a Carlos por que ele pintava o tio com cor mais forte. Ele disse que era porque o tio estava com ele todos os dias. E o pai, com cor mais fraca, não estava mais. Arrisquei a pergunta: “sua mãe está com você?”. E ele, prontamente, respondeu: “Não. Ela me abandonou”. Eu: “Você não gosta de desenhá-la?”. Ele: “Não. O meu pai eu desenho. Ela não”. E não perguntei mais nada. Mas eu falava que ainda estava atordoada com o caso da casa queimada e Carlos me solicitou atenção. Ele queria ser abraçado umas dez vezes nas manhãs em que eu estava ali. E no dia em que eu, rodeada de outras crianças, disse “daqui a pouquinho eu falo com você”, ele foi pro canto da sala. E chorou. Uma vez perguntei à professora da turma como era lidar com crianças com histórias tão problemáticas. E ela me respondeu o que eu já vinha constatando com aquela convivência: “aqui a gente tem que ser professora, mãe, pai, avó, tudo. Muitos deles só tem esse momento para receber carinho e atenção”.
A conclusão de todas as minhas experiências em sala de aula é que tudo que eu faço é desafiador. E que eu aprendo mais do que ensino. Aprendo sobre aquelas pessoas tão ricas e enriqueço. Porque aprendo também sobre mim.
Sou professora de Redação desde 2006 e revisora de textos desde 2005. Corrigir redação e revisar texto exige um detalhamento muito grande. É um trabalho demasiado acurado. Corrigir redação, por exemplo, solicita um primeiro olhar, para a organização do texto e a construção dos períodos, da boa ortografia. Solicita um segundo olhar, para o conteúdo e a sua riqueza. Pede ainda um terceiro olhar, para analisar o diálogo entre os parágrafos. E seguem o tamanho da letra, as margens etc. Uma verdadeira cirurgia textual.
Por isso, hoje, quando escuto de um aluno que ele escolheu tal profissão porque se inspirou em minhas aulas, sinto que tenho a profissão mais porreta, de um status sem fim. E quando recebo e-mails dos meus concurseiros e vestibulandos do Redação Nota Dez agradecendo pela aprovação e pela mudança que minhas correções provocaram em suas vidas, me vejo em câmera lenta saindo de um centro cirúrgico, após um procedimento delicado e bem sucedido.
Esse texto é uma dedicatória aos meus ex-professores, aos meus amigos professores, aos meus alunos-professores que tanto me ensinam, aos que, dia a dia, lutam pelas melhorias e pelo nosso melhor reconhecimento (não apenas o financeiro) e aos meus alunos do Redação Nota Dez, que formam seus pacotes de correções individuais para concorrerem a vagas de professores nos concursos estaduais e municipais país afora. Nós somos ou não somos uns médicos do caramba?! 😉
Olá!
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Prof Ena;
É com imensa satisfação que sou seu aluno. Espero que continue com esse brilho, que mesmo virtualmente, é latente.
Professores são médicos do inteligível. Através deles que se formam médicos do corpo e da mente.
Só tenho a agradecer.
Abraços.
Belo texto, Ena!!!Ele, de fato, nos mostra que ainda vale a pena ser professor!!!Abração!!!
Diego, fico feliz com suas palavras! Você sabe, e digo sempre, que é um prazer poder ajudá-lo.
Forte abraço!
Lisoca, um beijo!!!
Pô, Ena… “Pó Ena” é quase um… poema. HAHAHA
Abs
Como ler esse texto e não deixar um comentário? Afinal, fui citada nele. Rsrs. Sim, foi você, minha eterna professora Ena, que me fez escolher essa profissão e hoje estar realizada profissionalmente, podendo dizer “Sou professora”.
Fiquei lendo e pensando em todas as experiências que já passei em sala de aula. Super me identifiquei…
Parabéns pelo blog e pelo projeto Redação Nota Dez.
Você merece todo o sucesso do mundo!
Obrigada por tudo!
Não é, Raimundo?! 🙂 Rsrs!
Abraços!
Midi, que bom te ler!
A sala de aula é, de fato, uma grande experiência!
Um beijo grande em você!